segunda-feira, 14 de abril de 2014

ERA UMA VEZ UM PINTOR






"Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. 
Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha 
até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto 
atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando 
conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido 
à chegada do novo peixe. O problema do artista era que, obrigado a
 interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não
sabia o que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. 
Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos 
e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho
o nexo entre o peixe e o quadro, através do pintor. O preto formava 
insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor. 
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava 
na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número 
de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o 
mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo."



> Leituras num banco de jardim | Citação 4
Herberto Helder (n.1930), Teoria das cores, 
in "Os Passos em volta" ed. Assírio e Alvim, Lisboa, 2001 
(texto de 1962, publicado com alterações nas edições posteriores.)


> Xisto | Banco de Imagens da Silveira (BIS)
Paisagem com aquário, Silveira dos Limões, Abril 2014
(a partir de Herbert List, "Goldfish Bowl", 1937)
fotografia digital
©  CRO|XISTO|BIS|JX(RO)

5 comentários:

  1. Este conto faz parte das minhas memórias da adolescência.
    Fala-nos da lei que tudo abarca e que nunca como agora, tivemos a oportunidade de experimentar.
    As barreiras do real e do virtual tombam e sob elas, também nós muitas vezes tombamos, abafados pelo peso da cultura do espectáculo e do "wireless".
    Aceitar a metamorfose das "coisas", do mundo e dos homens ("ceci n'est pas une pipe"), é admitir a importância na preservação da alma. Daquilo que para nós é fundamental, primitivo.
    Se devemos pintar o mundo com as cores certas, aceitando a sua metamorfose, devemos preservar o que é essencial – o que faz de nós homens – não o fazer, é viver num paradoxo.
    Dizia Natália Correia que "ser-se revolucionário hoje é preservar a memória", assim seja, não tombemos.

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  2. É impressionante observar a multiplicidade de leituras e ecos que um texto pode ter. Isso deve-se, seguramente, à sua elevada dimensão, à sua universalidade. Depois de lido (ou vivido) esse texto universal, transporta consigo a história de quem o leu, deixando de pertencer quase por completo a quem o escreveu.

    Da minha leitura, há um momento inicial de juventude, associado ao primeiro contacto com a obra de Herberto Helder e, simultâneamente, à noção de poema em prosa, noção esta que me fascinou ao ponto de a associar à ideia de poema / "acto vitalício" (Almada Negreiros).

    Mas voltando à leitura deste texto de HH: li-o sempre enquanto pintor e agora, sem deixar de o ler enquanto tal, leio também "num banco de jardim" (o atelier ao ar livre). O conceito de fidelidade, por exemplo, deixou de ser apenas uma questão artística para se tornar sobretudo um contraponto ético ao conceito de lealdade. Abomino o valor da fidelidade, tanto quanto amo e admiro o da lealdade. Quanto à "metamorfose", questão central neste poema e também na criação da obra de arte, continuarei à procura.

    E pronto, se amanhã tiver de escrever sobre este poema, quem sabe, falarei de paradoxos.

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  3. São os quatro elementos numa fotografia. E um peixe, habitante da água. Parece que os pássaros são os únicos que percorrem os quatro elementos em plena liberdade, podendo observar de qualquer perspectiva. Quanto a nós, seres humanos, somos livres de pensar que a Cor e o Pintor se desafiam um ao outro e que o Pintor nos vai oferecendo a beleza que nasce desse desafio. Quando o Poeta se mistura com os pássaros e se debruça sobre o confronto entre a Cor e o Pintor, escreve textos inesquecíveis como este.

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    1. Apenas metaforicamente, o fogo está presente na fotografia. Talvez no vermelho-fogo do peixe que se metamorfoseou e é agora amarelo-dourado. Talvez no fogo vulcânico dos dois Herbertos.

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